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Como conviver com o Outro?

1 de outubro de 2009 / Ver outras notícias: Ver todas

“A Eloquência do Ódio”, este é o título do mais recente livro de Manuel Soares Bulcão Neto, servidor do TRT 7ª Região. A solenidade de lançamento da obra e seu livrofoi realizada nesta terça-feira (dia 29 de setembro), no Restaurante O Faustino.

O livro foi apresentado pelo Doutor Emmanuel Teófilo Furtado, Juiz Federal do Trabalho, coordenador da ERMAT/CE e membro da Academia Cearense de Retórica.

O evento foi prestigiado pela presidente do Sindissétima, Heloísa Felício, pelo diretor de comunicação do Sindicato, Teixeira Neto, pelo presidente do TRT, Antônio Parente, e por diversos servidores.

Confira a entrevista concedida pelo autor ao Diário do Nordeste.

Os fenômenos históricos que, me parecem, são os motores desta reflexão estão ligados aos regimes totalitários do século XX. O que estas manifestações trouxeram de novo para a história do ódio ao diferente?

Trouxeram a luta de extermínio decorrente da incompatibilidade entre povos ou grupos sociais que se julgam universalmente “eleitos”: os judeus por IHWH (Deus), os germânicos pela seleção natural (considerada reles instrumento dos deuses nórdicos e de outros seres divinais do misticismo oriental), os eslavos pelos pan-eslavistas (que consideravam essa raça como o novo Cristo do “Eschaton”) e a “vanguarda” comunista pelas férreas leis da História.

No caso dos regimes fascistas, costuma-se falar em racionalidade, mas sem que se entre num consenso. Ora são descritos como resultado de um racionalismo extremo, não refreado por uma moral; ora, como arroubos de irracionalismo e crueldade – fala-se mesmo do “Mal”. Na sua opinião, de que lado ficaria o regime nazista?

Alguns pensadores sustentam que os totalitarismos do século XX ou são o desdobramento inevitável da razão iluminista, ou – como defende Bauman – uma possibilidade que surgiu com a racionalidade moderna (possibilidade esta que não havia antes). Discordo desses pontos de vista. A Ciência e sua tecnologia apenas incrementaram, de forma exponencial, tanto as forças produtivas quanto as destrutivas; vale dizer, tornaram-se também instrumentos das inextirpáveis pulsões irracionais humanas. A propósito, para embasar esta suposta relação “necessária” entre racionalismo e totalitarismo, cita-se os campos de extermínio nazistas como “fábricas modernas” ou verdadeiras “indústrias da morte”. Esquece-se, no entanto, que não menos que 40% dos judeus mortos no Holocausto foram assassinados por métodos arcaicos, nada modernos, como fuzilamentos, trabalhos forçados até a morte etc. Ademais, é importante lembrar que o Partido Nazista praticamente surgiu de uma seita místico-esotérica, a “Casa Thule”; que seus ideólogos foram fortemente influenciados pelo irracionalismo de Nietzsche (este filósofo, em sua obra “Vontade de Potência”, declara-se o “antidarwin”) e outros irracionalismos mais primitivos, como a teosofia de H. P. Blavatsky, o armanismo, a teozoologia, a judeofobia cristã etc.

Há pontos de contanto entre Ditadura Militar no Brasil e esses regimes?

Há pontos em comum, como o autoritarismo e o patriotismo. As diferenças, entretanto, superam em muito as semelhanças; pois o nazismo foi também, e sobretudo, um totalitarismo, um racismo político e uma concepção de mundo. Aliás, como afirmou Lênin, uma ditadura militar ou “pessoal” não é necessariamente a negação cabal da democracia (seja “burguesa” ou “proletária”), consistindo, no mais das vezes, em regimes que se autoproclamam “de exceção” ou, conforme Roberto Campos, “biodegradáveis”: “uma magistratura extraordinária adaptada a épocas e circunstâncias excepcionais” (Norberto Bobbio), e que “pode ser boa ou má” (Maquiavel). Trata-se, pois, de uma forma de governo bem distinta da “tirania”, caso tanto do stalinismo como do hitlerismo. A tirania, segundo os clássicos, é uma forma má de governo por excelência.

Ao se falar em racismo ou alofobias, como você amplia no livro, é comum ver uma das partes ser retratada como vítima. No entanto, lembro do caso judeu/palestino, onde me parece o ódio é canalizado nas duas direções. Este embate de alofobias era mais comum na Antigüidade que nos nossos dias?

O fato de o “Homo Sapiens ” ser a única espécie do gênero “Homo”, e este o único gênero da família “Hominidae”, talvez isso indique, como apontou J. Monod, que o “struggle for life” de Spencer (luta intraespecífica – entre raças e grupos – de vida ou morte) foi um dos principais fatores da seleção da espécie humana. Sim, provavelmente fomos nós os assassinos dos nossos irmãos “sapiens neanderthalensis” e dos nossos primos “australopithecus”. Diga-se, ainda, que, segundo os antropólogos R. Wrangham e D. Peterson (“O Macho Demoníaco”, 1998), cerca de 30% dos indivíduos das tribos neolíticas ou de caçadores-coletores que ainda existem (caso dos Ianomânis) morrem em escaramuças intertribais (esse índice é idêntico ao dos chimpanzés). Demais, não são poucos os povos primitivos que se designam como “homens verdadeiros” ou “gente de verdade” (caso dos Suruí, dos Paracanâ, dos Crenacarore…), o que significa que o Outro não é considerado como igual ou pertencente à mesma espécie. Tudo isso são indícios de que os choques de alofobias eram muito mais comuns no passado. Não obstante, os choques que se verificam hoje são muito mais mortíferos e impressionáveis. Mortíferos porque, em vez de arco e flecha, os conflitantes atualmente se enfrentam com fuzis, metralhadoras, mísseis etc. E impressionáveis porque, graças ao surgimento das religiões universalistas (que proclamam a igualdade de todos perante Deus) e do iluminismo, valores tais como igualdade, liberdade e fraternidade tornaram-se componentes do bom senso de toda a humanidade. Por isso que, em relação ao litígio entre judeus e palestinos, não há apenas torcedores raivosos, mas também uma vasta gama de indivíduos e grupos sociais (cristãos, judeus, muçulmanos, ateus…) que se propõem o papel de árbitro e que, em solidariedade a essas duas etnias, anelam não a paz do vencedor ou do cemitério, mas a paz do consenso.

Quais os riscos da posição anti-racista, de afirmação desse ou daquele grupo específico, tornar-se, ela também, uma postura de ódio ao diferente?

Existe um anti-racismo “universalista” que, em vez de celebrar a diversidade humana (nosso politipismo e polimorfismo) e a igualdade na diferença, pretende superar todos os tipos numa síntese racial superior. Os “anti-racistas” da Ação Integralista Brasileira (Plínio Salgado, Gustavo Barroso etc) elegeram o caboclo como “a síntese de todas as raças e representante da união cristã dos povos”. Ora, esse anti-racismo não passa de um racismo invertido, ou melhor, do racismo do mestiço. Nos EUA, há os ideólogos do melting-pot, que almejam fundir no caldeirão da mestiçagem as raças que existem nesse país, de modo a criar “o novo homem americano” (isto é, uma nova raça). Trata-se de outro racismo travestido do seu contrário. Obviamente que há, também, o risco de minorias – ou mesmo maiorias – “de cor” oprimidas pelo racismo dos brancos virem a reagir irracionalmente e, assim, criar o seu próprio racismo, fundado no ressentimento.

Me parece que, por vezes, é difícil para muita gente associar reflexões sobre as manifestações extremas do ódio (caso dos já citados regimes fascistas) com práticas cotidianas, onde o Outro é menos discernível. Penso numa mobilidade dessa alteridade, como no caso dos fumantes. Leis de restrição ao fumo, como a que vigora em São Paulo , que aboliu mesmo a existência de fumódromos, são manifestações alofóbicas?

Penso que sim. Infelizmente, a “instituição” do bode expiatório ainda é necessária para muita gente (fato que muitos políticos manipulam), e me parece que os fumantes, atualmente, estão sendo investidos desta função, mormente por aqueles que sofrem de uma doença grave e mentalmente degenerativa: a mórbida obsessão pela saúde e corpo perfeitos (esses narcisistas não hostilizam apenas os fumantes, mas também os gordos, ambos tratados como desviados morais).


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